sábado, 28 de agosto de 2010

Diário




18 horas de um verão no inverno

O telefone toca, do outro lado, a voz do pai - veja que pecado, o Ganso precisa de uma cirurgia. Por um momento, rompo com o som da biblioteca, me colocando entre as estantes para continuar a prosa. Sei do delito cometido, mas pelo contrário, nenhum usuário teve o posto de reclamante no inicio de noite. Certamente a voz costumamente alta, herança das conversas nos almoços familiares de domingo, não teve destaque. Passado alguns minutos, tinha contato com os belos versos de Angalusa - notoriamente um grande romancista, mas um desconhecido poeta, pelo menos para mim. Na obra Coração dos Bosques – Poesia 1980-1990, uma anotação de forma sutil, que traz as sensações que apenas a relação entre obra e leitor proporciona. “O referido volume foi comprado, há cerca de um mês, numa livraria do Chiado, em Lisboa (uma das mais antigas e pequenas, para que conste). Estava cuidadosamente ‘soterrado’ sob uma pilha de outro livros, dentro de um caixote de cartão. Preço: 1 (um) euro. Não sei o que pensar disto.


Nem tudo é ficção

Os pequenos armazéns acabaram sombreados pela arquitetura das grandes redes. Mesmo localizados na região central, estão de certa forma esquecidos pela publicidade que pouco faz questão de aparecer. Para os antigos moradores, se percebe a grande satisfação em comprar nestes lugares - escolher tomates, alface, ou mesmo, ver que o preço da banana caturra está menor que da prata é uma tranquilidade, retornando pelo flashback das décadas passadas. Ainda é possível comprar cascos de refrigerantes de um litro, pela bagatela da nossa maior moeda, isso se torna uma espécie do passado vestido pela modernidade. Ainda na saída, uma breve conversa com um dos senhores, que conta sobre o casebre abandonado da esquina.


O colete marrom

Na conversa com a namorada, descobre que os problemas de uma cidade são muitos. Fatores diversos permeiam o cotidiano, mesmo os relógios precisam passar com seus ponteiros sufocados pelo brim da calça, após uma suposta acusa de meliantes no outro lado da avenida. O bombardeio de violência, fustiga a memória, que começou a rememorar fatos na discussão em torno da produção literária pós golpe de 64 - por mais que a delatação tivesse outro sentido naqueles idos. Nem mesmo os cachorros que se tornaram uma das marcas do centro da cidade parecem estar dispostos a cooperar com latidos para despertar a cidadania. Na atividade um "meliante" que certamente seria personagem marginal se não fosse um malandro com ares cênicos.

Senhores

A formalidade do apresentador contrasta com a fala deles. Perfilados em um semi- círculo - seis postulantes ao senado pelo estado do Paraná participam de uma sabatina então inédita na televisão. O jogo de perguntas e respostas via sorteio torna o debate um verdadeiro embate familiar - mesmo separados, muitos são parte de um mesmo partido, o que torna o diálogo uma oferta extensiva do programa diário dedicados a eles. Algumas zapeadas noturnas e me deparo com a frase: não cresci a base de raspinha de maça e mucilon, sem querer, um personagem começou a ganhar vida. Promete estar com as mangas dobradas até o primeiro turno das eleições.

Zapeando por aí

Aristóteles o que escreveria se presenciasse alguns rumos da comédia do século XXI? Não basta o humorista padecer por fazer parte de um segmento que capitaliza muito mais com os piores. Precisam trocar ensaios por caminhadas na orla carioca para protestarem conta a mordaça humorística. Ave, o humor venceu a lei com ares apartidários.

Extras

Paulo Henrique Ganso vai ficar seis meses fora dos gramados, validando o pecado suscitado pelo meu pai.

Dois litros de refrigerantes em garrafas retornáveis é muito mais em conta e saboroso.

Hoje ele não apareceu – talvez tenha embarcado para Francisco Beltrão.

Inri Chiristi é o marqueteiro dele, será?

A piada quase ficou muda com a lei.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O vazio é lotado de possibilidades



O silêncio, uma fração da realidade que se aquieta, entre os movimentos dos ponteiros no relógio. Para o escritor, o ato da escritura, transforma em onomatopéia o movimento pianista dos dedos. No urro da ideia, agoniza o verbo. Escrever é ato, presença e um pouco do agora.

Tantas coisas passam na sua frente, rememorando os tempos da infância, quando saia às cinco horas da manhã para trabalhar ao lado do seu pai no Mercado Municipal. Nas figuras dos velhos sacerdotes, que com suas propriedades de hortifrutigranjeiros, pagavam um pequeno salário para eles. Nas voltas da vida aprendeu que pelo caminho da escola, teria oportunidades diferentes - passados tantos anos, organiza sua agenda pessoal, começando sempre pela leitura do jornal enquanto toma o café da manhã.

Ultimamente o acontecimento de muitas coisas o faz sentir o desespero do adiamento de um novo texto. Com as atividades corriqueiras de uma profissão ortodoxa, fica com o espaço das férias para a escritura de textos longos - lembra que no último romance, necessitou de praticamente três recessos para conseguir finalizar o trabalho, que já contava com aporrinhações do editor. Semanalmente escreve crônica, começou como uma tarefa simples desta escritura tão cotidiana. No contato com outros escritores, acabou descobrindo que eles normalmente produzem isolados em seus escritórios-blibliotecas.

Uma das grandes chaves da ficção é o isolamento, mesmo que muitas vezes ela seja uma senhorita garbosa que não aceita a própria existência, precisando sair para o chá nos salões do centro da cidade. Exemplos de ficcionistas que procuram estar distante da sociedade e dos personagens criados em suas obras não são raros. Muitos fazem do contemporâneo a vida que os outros não enxergam - frequentando os lugares em que na porta está o aviso do funcionamento até às 22 horas. Cercado de tomos literários, muitos empoeirados, pede desculpas por deixá-los fechados por tanto tempo. Imagina o dia em que houver uma revolta dos narradores e personagens - todos entrando em greve.

Ao escutar da esposa que seu isolamento literário ainda seria fruto da fissura familiar, resolveu mudar de posição a escrivaninha abarrotada de papeis das mais variadas espécies, algumas com traços de um novo texto ou os predicados positivos de algum personagem secundário. Mais próximo da porta, podia ouvir as birras da filha pedindo um irmão que acabasse com sua solidão de filha única. No televisor comprado em uma liquidação pós Copa do Mundo, escuta que foi iniciada a campanha eleitoral, duas vezes ao dia, terá oportunidade de acompanhar o falar dos candidatos - entre os ruídos da rua invadindo os cômodos da casa.

No itinerário do seu dia, a rememoração surge no gosto do mamão durante o café da manhã. É dia de crônica – podendo tudo ou nada na parágrafo iniciado.


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Princeza




Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. A referência do escritor Graciliano Ramos é sobre Baleia, personagem do romance Vidas Secas (1938), certamente um dos mais importantes e bonitos de toda história literária brasileira. Na climatização do sertão alagoano a cachorra é o elemento que unifica ficção-realidade/realidade-ficção. Como leitores, somos testemunhas oculares da invasão dos personagens em nossas vidas. Virando páginas, encontramos outros capítulos, surpresas, finais. Finais?

Diferentemente da literatura onde podemos imaginar os fatos pela duplicidade, a vida nossa de casa dia não permite tais caprichos. A notícia chegou pelo celular - a Princeza morreu. Com a voz embargada meu pai retransmitia a fala da minha mãe. Naquele momento estávamos no trânsito caótico do sábado em Curitiba rumo a rodoviária - dois homens chorando timidamente, sem acreditar na situação. Coisas comuns nos momentos de perdas. Pouco tempo depois eu seguia viagem dentro de um ônibus na poltrona 37.

Para quem sempre considerou Vidas Secas como o mais belo romance da literatura brasileira, à partir do último sábado ele passou a ser também o mais importante. Graciliano tem razão, a morte duma cachorra é um troço difícil. Para quem teve por uma década a participação da Princeza no círculo familiar não será fácil conviver com a sua perda. A sua presença foi maior que a de um animal de estimação. Não pelo nome oriundo da nobreza, sim, pelo engano da natureza em chamá-la de cachorro.

A fotografia de Chaplin com um vira-lata, representa e fusiona muito bem a relação entre o homem e o cão. Símbolo do melhor amigo do homem ou a simples interpretação de gestual canino ao olharem para um transeunte com aquela expressão: me levem para casa, são comprovações que o cachorro representa sentimentos cada vez mais humanizados. O que dizer da máquina de frangos, coloquialmente chamada de "televisão de cachorros". Nossos aparelhos televisivos de polegadas cada vez maiores são gorduras para o pensamento. A denominação do cão como um alpinista social, realmente é, principalmente se comparados com a frieza dos gatos. E o homem? Seria um alpinista social em suas relações? Pode ser que a crítica soe alta e o sentimentalismo baixo, mas no íntimo acabamos sempre alpinistas pelos everestes da vida.

Na viagem pensei em momentos familiares com a participação da Princeza. Ela que eu costumava chamar de "velhinha", batendo palmas, improvisando uma espécie de samba desafinado, sempre correspondido com a inclinação do seu pescoço e um sonoro choro ritmado - aquelas eram suas palavras. As conversas no ateliê de costura e a interpelação dela no outro lado da porta, querendo atenção - essa Princeza, falava minha mãe. O sorriso do meu pai ao elogiá-la e ela começar a desfilar com suas patinhas tortas "a la Garrincha" exibindo o seu rabo comprido e fino. Minha irmã a tendo inicialmente como presente de Natal e posteriormente respondendo os vigilantes da gramática – minha Princeza é com z. Confidenciou ontem: ela cresceu comigo. E pensar que na quinta passada escutei do meu irmão ao soltar a Princeza e a Meg para a frente da casa, uma da frases mais ternas sobre cachorros: esses cachorros tem vida de cão. As corridas já mais lentas, o focinho branco, os latidos casmurros com os meninos jogando bola na rua, a tosse, a tosse, a tosse. Sua despedida de mim na porta entreaberta propositalmente por mim, respondida por sua sonata característica e seu olhar precioso.

A morte de um cachorro tem o perigo de fazer esses momentos em família desaparecer. Por mais que outros cachorros continuem e a vida também, nada volta, continuamos no agora lembrando do passado - como continuamos. Concordando com Graciliano mais uma vez, o bicho morre desejando acordar em um mundo cheio de preás.

No tilintar das refeições e no olhar para o quintal de casa a lembrança continuará escutando os sons da sua presença. Como disse Deleuze - a vida não morre. Estendendo essa ideia - cachorros também não.


Aqueles latidos, aqueles ....
Aquela carinha de felicidade ao escutar o tilintar das nossas refeições.
Aquela cachorra de patinhas tortas.
Aquela
aquela
aquela
aquela ....

Princeza que a natureza se enganou ao chamar de cachorro.