domingo, 12 de setembro de 2010

O avião de Henfil



O ato de assistir peças teatrais se tornou um dos exercícios mais clamados de prazer em ausência na minha vida. Constato, uma dívida impagável que exerço com a atualidade. Tal como um personagem devedor, um típico malandro, sempre busco brechas para assistir uma montagem teatral. Uma peça aqui, outra, ali, muito pouco, percebo ao olhar com desespero o informativo de mais uma peça anunciada no jornal.

Um dos envolvimentos de uma produção cênica é ultrapassar as fronteiras do palco e explodir no colo da velhinha na última fileira no teatro. Porém, ultimamente, apegado a dívida de deixar de acompanhar muitas peças, me jogaram no abismo de não conseguir aplaudir ou criticar muito do que porventura tenho acompanhado.

Desfeita as más impressões quanto a relação temporal dos caprichos com a arte dionisíaca, na mesma semana em que a quinta-feira, vestiu-se esportivamente de terça, ir ao teatro foi um acontecimento que mereceria um púlpito.

Ouvi distraído de um dos organizadores do espetáculo para esperar uns momentos antes de adentrar ao auditório principal do teatro. O cheiro do verniz exalado dos corrimões das escadas de acesso ao auditório inebriavam os poucos distraídos presentes ali. Poucos minutos depois, tinha a frente uma enormidade de poltronas vazias - pela primeira vez em alguns anos de eventos naquele local. Ao fundo canções brasileiras dos anos sessenta e setenta contornando a atmosfera que plainava sobre o público. A frente o palco imenso com um banco sem encosto, megafone, um litro de conhaque e três copos de martelinho. Nesse momento, remomerei Oswald de Andrade - "O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus". Sabia que essa afirmativa não é tardia, muito menos para a representação memorialística que começaria naquele momento - Henfil, Já.

Por imposições transitórias do tempo, não tive oportunidade de ser contemporâneo deste artista de natureza gigantesca, que assinalava em suas ilustrações e crônicas muito da situação vivenciada no período da ditadura no Brasil. Sem sombras de dúvida, o reflexo das censuras produziu no campo artístico uma inquietude que motivou muitas vezes os "donos do país" convidarem muitos deles para mandarem postais escritos com o cenário gélido da neve. O próprio momento de transição presidencial, na qual o relacionamento entre situação e oposição é uma mistura de agressividade e comédia, é antes de tudo, livre, pelos preceitos da democracia presente.

Cartas á mãe, Diário de um cucaracha, são exemplos de uma montagem, que levou o trio de atores, revivendo Henfil a levitar no palco e fazer a plateia, inclusive eu, já desacostumado com esse sentimento provocado pelo teatro novamente me perguntar - o passado realmente existiu?

Pautado pelo montagem, parece que a ficcionalidade é apenas uma parte do inventário do irremediável, neologismo ao nome da obra de Caio Fernando Abreu. Em falas censuradas, muitos Henfis, Zuzus Angels, Pixotes, Lulas, Chicos foram entoados no palco, parecendo abstratos pelo ponto de vista da arte no agora.

Em uma rápida conversa no final do espetáculo, confidenciei: somente com humor para vencer um país de censores.

Uma excessiva sequência de fotos de um militante de jornalismo atrapalhou a peça. Pensando bem, Henfil gostaria de ver as fotos, que no seu próprio tempo, foi fechada em arquivos. Já o ponto alto foi o avião do Henfil cair justamente em minha direção, seria um aviso da liberdade, mesmo que tardia?

Os inconfidentes nos responderam isso há muito tempo.



sábado, 4 de setembro de 2010

Perdoa, Drummond



Encontrou na crônica sua preferência de leitura diária. O ato de começar e findar o texto sempre foram comovedores. Uma dádiva para os padrões modernos, confidencia enquanto adianta umas questões de teoria literária para a próxima aula.

Não escreve para estabelecer juízo de valor, afinal para ele o contato com contos, romances, novelas, poemas, peças de teatro são exercícios da cidadania literária, que por questões temporais, carrega na sua biblioteca particular. Por vezes, precisa puxar do fundo das lembranças o nome de um autor ou personagem para responder a dúvida em conversas de corredor na universidade.

Imagina o dia em que alguém perguntar sobre herança do leitor – a dúvida será respondida pelo contato com os jornais, principalmente os populares, cascudos de suor.

Voltando para a sua realidade, em uma sala de aula abafada, o calor setembrino torna até mesmo os ipês coloridos em inutensílios (palavra originalmente usada pelo poeta Manoel de Barros e desdobrada por Paulo Leminski). O seu contato com a disciplina de literatura ajudou a desenvolver o roteiro de leituras, que um dia chegou a vislumbrar como o correto.

Na semana em que os poetas e a poesia - não a alma gentil que partiste, são entoados nas classes de literatura, Em nome da Senhora Gorda*, justamente uma crônica é o itinerário.

O diálogo e o atraso são pares na universidade – sentencia enquanto atuante do círculo acadêmico, ainda sem saber até quando o espelho refletirá a valsa pela realidade. A vocação de cada um varia com inclinações da grade curricular. Respeita os colegas, apesar de defender que a literatura deva ser sempre levada a tira colo.

O olhar iconoclasta dos outros normalmente o isola como o sujeito com a obrigatoriedade de saber os conteúdos de literatura. Nem mesmo as láureas acadêmicas são capazes de saberes exagerados. Desafia a epifania da canção oitentista – nem sempre se pode ser Deus.

No meio do caminho tinha uma pedra, justamente em uma aula sobre o Drummond, lhe pedidam para diminuir o tempo do documentário sobre o poeta. Logo para ele que assistiu ao filme na noite anterior, pausando outras emergências do conteúdo diário. Parte a parte dos fragmentos devidamentes cronometrados para conceber uma traição honesta com o tempo disponível na aula de literatura brasileira.

Voltando para a exibição da película sobre o poeta de Itabira, muitos alunos tinham em suas conversas paralelas atributos mais importantes que aquelas cenas entre a diplomação em farmácia ainda jovial em Minas e a entrevista simpática nos anos 80 em Copacabana. Os assuntos do estágio do dia anterior, das provas após o feriado da independência, ecoavam radiofônicos na sala. Um deles exclamou sobre o show universitário em um pavilhão de exposições da cidade durante todo o feriado.


- Não vou estudar.

- Nem eu. Poesia é apenas ler - disparou o outro.


Não é nova essa situação, desde sua primeira semana na universidade, ainda nas aulas sobre Brás, Bexiga e Barra Funda, esses mesmos alunos galhofavam a situação de Gaetaninho. Encurralado em uma carteira no fundo da sala, que naquela altura contava com um número quatro vezes maior que da turma atual, ele padecia com o sangue italiano inebriado pelos comentários. Tempos depois, já no último ano da graduação, os risos fáceis com o sotaque lusitano, logo em uma declaração de um crítico português sobre a obra de Fernando Pessoa foram manifestados na sala de aula.

Se perguntado, não saberia definir o movimento do qual faz parte no momento, mas acredita que o contato com as leituras de literatura é menor que um compromisso pedido por qualquer outra disciplina.

A sua única certeza é que a pedagogia vai recolher muitos, inclusive os que tiveram contato com a crônica Em nome da Senhora Gorda durante o primeiro ano do curso de letras.


* crônica originalmente no livro Impurezas Amorosas (2006), de Miguel Sanches Neto.