sexta-feira, 2 de abril de 2010

Como pode ser chato o "ser" moderno


Não sei direito, mas de uns tempos para cá, escrever se tornou uma prática costumadamente cotidiana, tão comum como comprar pão em alguma panificadora localizada em esquinas. Ao deleite da modernidade, com cpf, rg, título de eleitor e habilitação na categoria B, repouso meu indicador e mingo finos sobre o teclado, sendo orientado por personagens com um talento persuasivo imenso - muitas vezes, enaltecendo a realidade que não os cerca. A prática da escrita não pode ser restrita ao comodismo do silêncio, naqueles idos de encantamento poético ainda crentes apenas na inspiração. Nas fronteiras do inquilinato, ruídos dos vizinhos invadem o espaço, do qual pago para não ouvir prosas alheias. Ao contrário dos nossos ancestrais escritores, habitando no ato da escrita observados pelo silêncio dos romances comprimindo página por página, se possível com um piano como moldura do espaço. Outra noite, o vizinho do apartamento ao lado esquerdo, a partir da escrivaninha sem verniz na qual escrevo, emitiu sons guturais, denunciando o relacionamento de número ímpar, por mais que no momento formassem par. No andar de cima, uma atriz decorava seu pequeno texto. Talvez a insistência naquela cena com duas falas seja pressão do diretor em reativar um texto com a ideologia do teatro de protesto, por mais que a modernidade veja com um olhar desconfiado remakes teatrais. Na televisão, o refúgio obsoleto, me faz escutar o noticiário de fianco - quedas nas taxas de importação. Logo, o flash da publicidade, ilumina toda a saleta com um vermelho forte, na tela um ator de folhetim das oito, amestradamente mostra os dentes, incluindo o céu da garganta, tudo para convocar os brasileiros para o saldão de final de semana. Constato que o cinema não teve grande impacto na trajetória do lord tupiniquim - críticas a parte, volto ao texto.

Abruptamente o telefone toca, por um instante esparramo os papéis e contas pela escrivaninha, procurando pelo celular, ao notar a emissão do som no fundo da saleta, caminho para pegar o velho telefone inventado por Graham Bell. No outro lado, a factual ligação noturna, comum aos que estão fora de casa há menos de cinco anos. A diferença em receber um telefonema durante a noite mais enveredado aos 30 anos, é que ele é uma forma de encontro com gratidão, comum também nas longas conversas adolescentes, porém estas, acabam se configurando muito mais como platonismo. Do outro lado da linha, escuto o latido dos cachorros da família, neste momento sinto a solidão preencher as lacunas românticas do ato de escrever. Não demora para uma dúvida ocorrer, depois da reforma ortográfica, normalmente pairo na acentuação, ou ainda, na falta dela - ainda sobre o efeito dos latidos consulto um dicionário lusitano. Sigo em uma labuta com os personagens, relendo os parágrafos iniciais, não concordando com o comportamento deles perante aos impasses diários. Escuto reclamação do comércio, segundo a minha mãe, está tudo muito ruim neste ano. Enquanto ela fala, relendo o texto, penso em argumentar sobre o potencial número de leitores que um escritor tem - certamente o número de páginas de um romance não corresponde ao de leitores, na grande parte das vezes - talvez Homero, ou ainda Paulo Coelho consigam. Desfeita a ideia lacônica, concordo com a crise do comércio no aniversário da primeira década do novo século - no outro lado, meu pai interrompe a minha mãe, começando a falar da rodada do certame de futebol. Na rua um carro não conseguiu frear no asfalto encharcado da chuva do veranico de março. Quando penso em deixar a quase linguagem de onomatopéias para comentar sobre futebol, em ano de Copa do Mundo essa vicissitude não é alegórica – aliás, nunca é. Como resposta, ele me diz que o telefone subiu mais de 4% no último mês - boa noite, boa semana. Sem tempo de uma resposta completa retribuo em pensamento o mesmo.

Retorno o olhar para o texto, mas o cansaço cotidiano me pede para continuar em outra hora, provavelmente amanhã ou depois. Os personagens mesmos, reivindicam mais atenção, exigindo uma postura mais formal e mais distante possível do pedantismo comum na literatura contemporânea.

Nas amostragens diárias, a atriz ainda está ansiosa com a pré-estreia em um festival interiorano de teatro e meu outro vizinho resolveu terminar o namoro. Na esquálida incerteza do cotidiano, imagino como seria a solidão de um escritor sem a internet, celular e todas as questões mundanas da vizinhança. Talvez, a essência árcade tivesse seu lugar - porém, do espírito pastoril, apenas os carneiros, um resquício infantil, que imagino já deitado na cama, enquanto escuto música do mesmo computador em que amanhã volto para finalizar o texto.

2 comentários:

p s disse...

O texto veio para "cá". Mas reforço, devia ter ido para "lá". Meu sexto sentido não falha. rsrs
Gostei 100,1%.

Tuca. disse...

Olá,

Gostaria de pedir autorização para utilizar a foto do Largo da Ordem que você utilizou no dia 21 de janeiro de 2009 em seu blog. Não sei se a foto foi tirada por você mesmo: ela me apareceu no Google imagens entre os primeiros resultados. A foto, além de bonita, mostra exatamente, no canto, o Palacete Wolf, meu destino em minha crônica, cujo título estou tentando criar para que você possa identificar...

Pronto: se chamará "Gritos e sussurros". http://nabocadocavalo.blogspot.com/2010/04/estavamos-andando-e-conversando.html

O bloq é de estudantes duma oficina de crônicas e lá há diversas crônicas de diversos alunos.

Se eu puder (ou não) publicar a foto, comente lá. Achei melhor só colocar depois de devidamente autorizada a publicação.

Abraço!