segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Princeza




Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. A referência do escritor Graciliano Ramos é sobre Baleia, personagem do romance Vidas Secas (1938), certamente um dos mais importantes e bonitos de toda história literária brasileira. Na climatização do sertão alagoano a cachorra é o elemento que unifica ficção-realidade/realidade-ficção. Como leitores, somos testemunhas oculares da invasão dos personagens em nossas vidas. Virando páginas, encontramos outros capítulos, surpresas, finais. Finais?

Diferentemente da literatura onde podemos imaginar os fatos pela duplicidade, a vida nossa de casa dia não permite tais caprichos. A notícia chegou pelo celular - a Princeza morreu. Com a voz embargada meu pai retransmitia a fala da minha mãe. Naquele momento estávamos no trânsito caótico do sábado em Curitiba rumo a rodoviária - dois homens chorando timidamente, sem acreditar na situação. Coisas comuns nos momentos de perdas. Pouco tempo depois eu seguia viagem dentro de um ônibus na poltrona 37.

Para quem sempre considerou Vidas Secas como o mais belo romance da literatura brasileira, à partir do último sábado ele passou a ser também o mais importante. Graciliano tem razão, a morte duma cachorra é um troço difícil. Para quem teve por uma década a participação da Princeza no círculo familiar não será fácil conviver com a sua perda. A sua presença foi maior que a de um animal de estimação. Não pelo nome oriundo da nobreza, sim, pelo engano da natureza em chamá-la de cachorro.

A fotografia de Chaplin com um vira-lata, representa e fusiona muito bem a relação entre o homem e o cão. Símbolo do melhor amigo do homem ou a simples interpretação de gestual canino ao olharem para um transeunte com aquela expressão: me levem para casa, são comprovações que o cachorro representa sentimentos cada vez mais humanizados. O que dizer da máquina de frangos, coloquialmente chamada de "televisão de cachorros". Nossos aparelhos televisivos de polegadas cada vez maiores são gorduras para o pensamento. A denominação do cão como um alpinista social, realmente é, principalmente se comparados com a frieza dos gatos. E o homem? Seria um alpinista social em suas relações? Pode ser que a crítica soe alta e o sentimentalismo baixo, mas no íntimo acabamos sempre alpinistas pelos everestes da vida.

Na viagem pensei em momentos familiares com a participação da Princeza. Ela que eu costumava chamar de "velhinha", batendo palmas, improvisando uma espécie de samba desafinado, sempre correspondido com a inclinação do seu pescoço e um sonoro choro ritmado - aquelas eram suas palavras. As conversas no ateliê de costura e a interpelação dela no outro lado da porta, querendo atenção - essa Princeza, falava minha mãe. O sorriso do meu pai ao elogiá-la e ela começar a desfilar com suas patinhas tortas "a la Garrincha" exibindo o seu rabo comprido e fino. Minha irmã a tendo inicialmente como presente de Natal e posteriormente respondendo os vigilantes da gramática – minha Princeza é com z. Confidenciou ontem: ela cresceu comigo. E pensar que na quinta passada escutei do meu irmão ao soltar a Princeza e a Meg para a frente da casa, uma da frases mais ternas sobre cachorros: esses cachorros tem vida de cão. As corridas já mais lentas, o focinho branco, os latidos casmurros com os meninos jogando bola na rua, a tosse, a tosse, a tosse. Sua despedida de mim na porta entreaberta propositalmente por mim, respondida por sua sonata característica e seu olhar precioso.

A morte de um cachorro tem o perigo de fazer esses momentos em família desaparecer. Por mais que outros cachorros continuem e a vida também, nada volta, continuamos no agora lembrando do passado - como continuamos. Concordando com Graciliano mais uma vez, o bicho morre desejando acordar em um mundo cheio de preás.

No tilintar das refeições e no olhar para o quintal de casa a lembrança continuará escutando os sons da sua presença. Como disse Deleuze - a vida não morre. Estendendo essa ideia - cachorros também não.


Aqueles latidos, aqueles ....
Aquela carinha de felicidade ao escutar o tilintar das nossas refeições.
Aquela cachorra de patinhas tortas.
Aquela
aquela
aquela
aquela ....

Princeza que a natureza se enganou ao chamar de cachorro.





Um comentário:

Kah disse...

fez uma história e agora nos deixou com saudades!
q saudades de escutar o 'tec-tec-tec' das patinhas dela ;/